Por Thiago Peniche e Kris H. Oliveira
André Machado e Kris H. Oliveira compartilham os avanços, desafios e reflexões sobre o projeto de pesquisa multicêntrico em entrevista à revista científica
Os coordenadores-gerais do projeto PrEP América do Sul, André Machado e Kris H. de Oliveira, compartilharam os bastidores do primeiro ano de atividades e refletiram sobre o cenário da pesquisa científica no Brasil em uma entrevista concedida à Revista Áskesis (v. 14, nº. 01, jan-jun/2025). A conversa, conduzida pelo doutorando Patrick de Almeida Trindade Braga (UFMS/UEMS), abordou a trajetória dos pesquisadores, a PrEP e sua “vida social”, os avanços nas atividades do projeto, a construção da rede de pesquisa, entre outros temas.
A seguir, acompanhe alguns destaques da entrevista ou acesse o conteúdo completo aquí.
A vida social da PrEP e os objetivos da pesquisa
A Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) é uma estratégia altamente eficaz e segura para a prevenção do HIV, comprovada por diversos ensaios clínicos randomizados. Na forma oral, combina os medicamentos tenofovir e emtricitabina. Mais recentemente, surgiu a versão injetável de longa duração, uma tecnologia vista como promissora que ainda não está amplamente disponível como a PrEP em comprimido. Contudo, para além dos avanços biomédicos, os coordenadores destacam a importância de refletir sobre a “vida social” da profilaxia e seus impactos nas políticas públicas e nos modos de viver a prevenção.
“A PrEP é uma das maiores apostas biomédicas para prevenção ao HIV da última década. Os estudos sobre a PrEP para prevenção do HIV começaram no início dos anos 2000. Durante seu desenvolvimento, houve uma onda de críticas por parte de ativistas em relação ao fato de os testes clínicos em humanos terem sido conduzidos, em grande parte, em países mais pobres, especialmente nos continentes africano e asiático. No entanto, hoje a PrEP se consolidou como um medicamento altamente eficaz na prevenção da infecção pelo HIV.” – Kris H. Oliveira
“(…) é um equívoco pensar que a PrEP será a responsável por resolver o problema da epidemia de HIV/aids. Ela não é um problema em si, mas a forma como ela é discutida ou distribuída pode ser um problema. Primeiramente, porque nem todas as informações estão postas. Nem todo mundo consegue o acesso à PrEP da mesma forma porque há barreiras geográficas, sociais, institucionais…” – André Machado
A PrEP consiste no uso diário ou sob demanda de medicamentos antirretrovirais que previnem o HIV. Essa estratégia de prevenção está disponível gratuitamente no SUS desde 2017. Foto: Thiago Peniche.
O PrEP América do Sul é uma pesquisa qualitativa multicêntrica que busca compreender as experiências de acesso, uso e gestão da PrEP para prevenção do HIV em países sul-americanos. Segundo os coordenadores, entre os principais objetivos do estudo está o compromisso de contribuir diretamente para o aprimoramento das políticas públicas na região. A partir de entrevistas com usuários e gestores, além de observações em unidades que dispensam o medicamento, a pesquisa pretende produzir evidências qualificadas que orientem decisões mais eficazes e sensíveis às realidades locais.
“Como todo medicamento, a PrEP possui uma vida social. Em um contexto tecnobiopolítico, ela opera como uma forma de controle e gestão de diferentes corpos e da sexualidade. Nosso interesse não é discutir o que é certo ou errado na política de PrEP, mas de tentar entender como as políticas se desenham a nível nacional e internacional, no contexto da América do Sul.” – Kris H. Oliveira
“A ideia é que os dados do projeto sejam apresentados em um resumo executivo ao Ministério da Saúde, para subsidiar os formuladores de políticas públicas. Essa é uma exigência que eles nos fazem: que nossa crítica venha acompanhada de propostas, de caminhos concretos para transformar o sistema de saúde.” – André Machado
A construção de uma rede colaborativa na América do Sul
Desde sua concepção, o PrEP América do Sul priorizou a construção de uma rede colaborativa forte e diversa em termos de áreas de conhecimento, níveis de experiência e atuação geográfica, o que se revelou fundamental para a riqueza da pesquisa. De acordo com a entrevista, este é um esforço de coalizão que reúne mais de quarenta pesquisadores e pesquisadoras no Brasil, na Argentina, Colômbia e Bolívia. O projeto conta com a participação de importantes universidades e instituições da sociedade civil, como a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA). O estudo é financiado pelo CNPq e Ministério da Saúde.
“Acho que o PrEP América do Sul é um projeto que se constrói na solidariedade. O projeto é composto por alguns pesquisadores que já possuem um repertório muito grande na discussão sobre HIV/aids ou na discussão de gênero e sexualidade, mas também temos pesquisadores que estão no início de suas carreiras, então há uma diversidade de gerações (…) temos um capital intelectual na discussão sobre o tema que poucas redes tiveram o privilégio de desenvolver.” – André Machado.
“Aos poucos, fomos somando mais pesquisadores, fortalecendo uma rede, o que é um dos maiores ganhos do projeto, e que não pode ser perdida: eram pesquisadores que já trabalhavam em projetos específicos, em suas regiões ou com um grupo já consolidado. O projeto articula, de forma ampla, uma rede de pesquisadores experientes em questões de gênero, sexualidade, raça e HIV/aids, com um foco mais específico nas tecnologias de prevenção, como a PrEP.” – Kris H. Oliveira
A experiência dos coordenadores como usuários de PrEP
Um dos aspectos que torna o projeto PrEP América do Sul único é o fato dos coordenadores-gerais serem também usuários de PrEP. Essa vivência pessoal, segundo a entrevista, resulta em uma “perspectiva etnográfica interessante”, visto que ambos estão inseridos no contexto desta tecnologia de prevenção, e entendem as nuances e os desafios que podem passar despercebidos por quem observa de fora.
“Eu também sou um usuário da PrEP, o que é uma perspectiva etnográfica interessante, visto que nós estamos totalmente inseridos no contexto da prevenção. (…) Em Campinas, por exemplo, onde moro, o acesso à PrEP está restrito à unidade de referência, o antigo CTA. Em minha leitura, isso é extremamente problemático, pois todas as pessoas interessadas precisam se dirigir a um único serviço, que concentra o atendimento para todas as ISTs, resultando em sobrecarga e possíveis barreiras ao acesso.” Kris H. Oliveira
“Como usuário de PrEP [em Manaus], já me aconteceu de não ter conseguido ser atendido pelo profissional responsável pelo tratamento em uma unidade de saúde porque naquela unidade ele só fazia doze atendimentos diários, que já tinham sido encerrados naquele dia. Uma pessoa em situação vulnerável que conseguisse juntar a grana do ônibus para ir até a unidade de saúde para chegar e ser recusada, porque já se acabaram as consultas disponíveis do dia, teria uma experiência diferente.” André Machado
Críticas ao modelo de financiamento
Também foi abordado durante a entrevista o modelo de financiamento da pesquisa no Brasil, que, segundo os coordenadores, apresenta desafios significativos, especialmente em relação à sustentabilidade do projeto e à valorização dos pesquisadores.
“Este até então foi o maior desafio da minha carreira. Espero que tenhamos um mínimo de reconhecimento. Eu e André não temos retorno financeiro com o projeto. Nem nós nem os outros pesquisadores do projeto. Somente os bolsistas recebem as bolsas de pesquisa ou apoio à difusão do conhecimento. Isso não deixa de ser uma crítica a como os editais vêm sendo formulados, porque eles devem pensar também nas pessoas que trabalham no projeto.” Kris H. Oliveira
“O PrEP América do Sul foi um dos poucos projetos que recebeu todo o valor que solicitou. Entretanto, destaca-se que cerca de oitenta por cento do financiamento é em bolsas… Para publicarmos na área da saúde em uma publicação de alto fator de impacto, que é o que se exige, o custo é de 8 a 10 mil reais. Eu e Kris ficamos pensando em como faríamos para lidar com a questão financeira e acabamos submetendo para um novo edital… Isso sem receber nada.” André Machado
Acesse a entrevista completa na Revista Áskesis.